Ensino de literatura: profissão ou arte?

Ser professor de literatura gera algumas perguntas interessantes. Como o objeto de estudo é uma das artes consideradas nobres, o professor dessa disciplina tem de ser um artista também? A disciplina propriamente dita, literatura, é uma disciplina como as outras do currículo ou sua condição de arte a destaca das demais?

À primeira vista, a literatura parece mais importante do que a música, a pintura, o teatro e as demais artes. A condição de arte eminentemente verbal empresta à literatura prioridade no currículo, na carga horária, nos exames, no corpo docente. Entretanto, ainda que eu mesmo seja professor de literatura, entendo que essa prioridade deve ser contestada, até porque ela nem sempre faz bem à literatura. Para transformá-la em uma disciplina “como as outras”, acaba-se ensinando literatura para se ensinar ou história ou língua ou cultura ou até mesmo patriotismo, escamoteando-se o seu caráter artístico.

A literatura seria então apenas um objeto de estudo como os outros? Penso que não. Se a literatura é arte, parente muito próxima dos mitos e das religiões, então ela é menos um objeto de estudo do que uma morada existencial. De modo bem diverso das demais disciplinas, a literatura pode se tornar apaixonante tanto à razão quanto à emoção de uma pessoa.

Por quê? Porque ela deliberadamente suspende a realidade a um nível ao mesmo tempo íntimo e superior – superior porque fruto assumido da invenção humana. Nessa perspectiva, uma reflexão sobre a literatura que preserve a paixão original exige menos fazer teoria da literatura do que buscar a teoria na literatura; menos aplicar uma teoria ao texto literário do que mostrar no próprio texto o pensamento (a teoria) que o sustenta. Dizendo de outro modo: devo abdicar de controlar a literatura com minhas categorias lingüísticas ou históricas para deixar emergir seu enigma – mas sem resolvê-lo nem destruí-lo. Cabe-nos menos revelar o que o autor quis dizer no seu texto (tarefa de resto impossível, nem o próprio autor o saberia fazer) e mais proteger o enigma que ele formulou para nós e sobre nós.

Essa reflexão me leva a outra pergunta, um pouco incômoda: quantos de nós começamos a fazer Letras, a estudar literatura, porque gostávamos de ler e sobretudo de escrever? A pergunta é incômoda porque a sua resposta bem pode ser: muitos, quiçá a maioria. Ela gera uma outra pergunta: quantos de nós paramos de escrever já na faculdade ou pouco depois, quando começamos a dar aula? A resposta à segunda pergunta, infelizmente, pode ser idêntica: muitos, quiçá a maioria. Isso acontece, talvez, porque transformamos o objeto da nossa paixão em apenas um objeto de estudo, supondo que assim dominaremos seu enigma. O preço a pagar é alto: a literatura deixa de ser arte para nós e nossos alunos e se torna uma “matéria” (na melhor das hipóteses, chata).

No entanto, há resistências. Há professores e escolas e universidades que não esquecem que a literatura é antes de tudo arte: desafio e enigma, paixão e ilusão. Isso acontece em vários níveis – por exemplo, quando se criam oficinas literárias nas escolas, ou quando uma universidade institui um programa de Escritor Visitante (como o fez o Instituto de Letras da UERJ, trazendo anualmente escritores do porte de Sérgio Sant’Anna, Rubens Figueiredo, João Gilberto Noll, Antônio Torres), ou quando uma pós-graduação em literatura aceita um trabalho de ficção como tese. Essa proposta, como demonstram os finalistas recentes do Prêmio Jabuti e do Prêmio Portugal Telecom, costuma ser bem-sucedida, gerando trabalhos de ficção ousados e conseqüentes porque frutos do diálogo tenso com a reflexão acadêmica.

Isso se chama: produção de conhecimento e de cultura.

Mas há quem não concorde – talvez alguns daqueles que se esqueceram do porquê quiseram estudar literatura. Argumentam que um trabalho de ficção não seria um trabalho científico, como se todo trabalho científico não fosse sempre um trabalho de… ficção. A hipótese científica é sempre uma suposição, um “como se” fosse para ver se pode ser assim mesmo. A estrutura discursiva da literatura stricto sensu difere da estrutura de um tratado de Física, mas o princípio do “como se” anima ambos os discursos. Por isso, mesmo em termos de teoria do conhecimento, mesmo em termos epistemológicos, não procede a resistência a trabalhos de ficção na escola e na universidade.

Não procede, mas se explica: explica-se pela dificuldade óbvia, reconheço, de orientar e avaliar um trabalho de ficção, quando os critérios se tornam bem menos seguros. Todavia, há critérios: os mesmos que utilizamos para distinguir se uma obra literária é menor ou maior, se obra-prima ou não. Ainda há outra explicação, que reluto em escrever mas escrevo: ressentimento. Se abandonei minha paixão no início do caminho para conquistar minha posição acadêmica, como esse fedelho que não deu todas as aulas que já dei e não corrigiu todas as provas que já corrigi se atreve a fazer da sua tese um romance, enquanto eu larguei meus poemas em passado remoto?

Nesse ponto, temo que alguns dos meus colegas se ofendam, e antecipadamente lhes peço desculpas. Não falava sobre eles, que trabalham sempre protegendo o enigma da arte. A carapuça do ressentimento não serve em todas as cabeças, há tantos outros motivos para resistir à arte na academia.

Todavia, nós sabemos que ela serve sim em algumas cabeças: aquelas que justificam o nefasto ditado popular que nos persegue, nefasto até porque não de todo falso: “quem sabe, faz; quem não sabe, ensina”. Já não ouviram isto? Como professores, principalmente como professores de literatura, não podemos dar razão a esse ditado. Por isso, há que continuar fazendo – fazendo arte! – para dar o melhor exemplo a nossos alunos; da mesma forma, há que continuar estimulando quem faz – arte! – para recuperar não apenas para a literatura, mas também para o magistério, a sua condição original de… arte.

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Autor: Gustavo Bernardo
Sobre o autor: Gustavo Bernardo é professor de Teoria da Literatura no Instituto de Letras da UERJ e também escritor, autor de ensaios como A ficção cética (São Paulo: Annablume, 2004) e romances como A filha do escritor (Rio de Janeiro: Agir/Petrobras, 2008).
Data: 17/09/2008
Publicado em: 17/09/2008

O original está aqui. O artigo foi uma indicação do meu amigo Rafa.

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